Jhonny


O suor escorria em sua testa, sua mão tremia e poderia jurar que estava a beira de um infarto.

Não entendia o que havia acabado de acontecer, era demais para seu cérebro processar. O corpo estendido no chão não se movia mais, e por isso estava profundamente agradecido e petrificado. Soltou a arma, nojo, era isso que sentia daquele objeto. Ela caiu com certo estardalhaço no balcão e aquietou-se, mas Jhonny não conseguia tirar os olhos dela, como se aquele objeto fosse ganhar vida e pular em cima dele.

Desabou na cadeira quando sua visão embaçou, porém não desfaleceu. Olhou para a fonte de brilho e depois de alguns segundos percebeu que era a tela de seu computador, palavras e imagens desconexas flutuavam naquela fonte de brilho alienante, fazendo com que os pensamentos ruins fossem para longe por alguns segundos, porém, quando voltaram, o fizeram quase chorar.

Polícia! Tinha que ligar para a polícia.

Pegou o telefone da loja e depois de errar o numero uma vez conseguiu a linha, porém ninguém o atendeu. Tentou novamente, e novamente. Nada... olhou seu relógio, eram quatro horas. “Como ninguém lá me atende quatro horas da tarde porra?” – Pensou irritado. Arremessou o telefone no balcão, mas logo se arrependeu de tê-lo feito. Levantou-se vagarosamente e olhou para o corpo, como se o barulho tivesse acordado o morto.

Assim que sentou-se, uma idéia lhe veio a mente, é claro! Pegou o telefone novamente mas este não estava mais dando linha. Merda, tinha quebrado a porra do aparelho. Apalpou os bolsos e sentiu o celular. Logo estava ligando para Paulinho.

“Paulinho?” – Sua voz estava muito apagada

“Fala Jhonny, que foi?”

“Cara... porra cara, o cara me atacou e eu atirei nele cara, EU ATIREI NELE!” – Gritou com uma lágrima escorrendo.

“Quê? Como assim? Atirou em quem?”

“Porra, eu atirei num cara aqui na loja, ele me atacou e não parava... eu tive que atirar nele quatro vezes. QUATRO!”

“Você atirou em alguém? Caralho Jhonny, mas que porra é essa? Tem alguém aí com você? Você disse que tá na loja?”  Paulinho aumentara a voz, começando a partilhar do desespero do amigo

“É caralho, eu to na loja, o Sérgio não dispensou a gente hoje não, disse que essas merdas de alertas ae são tudo baboseira”

“Porra cara, a polícia já foi aí? Quanto tempo faz?”

“Veio ninguém não, tentei ligar pra polícia mas ninguém atende... eu matei o cara... EU MATEI O CARA!”

“Mas porque?”

“PORRA PAULINHO, EU TO QUASE MORRENDO DO CORAÇÃO E VOCÊ AINDA DÚVIDA SE EU TIVE RAZÃO? VAI SE FUDER CARALHO, EU PRECISO DE AJUDA, NÃO DESSAS MERDAS!!!” – Jhonny explodiu, ficando vermelho de raiva.

“Calma cara, porra... to indo ae, fica aí”.

Assim que Paulinho desligou, Jhonny perdeu quase todas suas forças e caiu novamente na cadeira, exausto. Colocou as trêmulas mãos em seu rosto esfregando o suor. Trêmulas chegava a ser apelido para o que acontecia, pois chegou até a se arranhar com suas mãos sacudindo em tamanho frenesi.

Tinha matado um cara! Nunca fizera mal a uma maldita mosca mas tinha matado alguém. Esse pensamento não se encaixava, era como se sua vida tivesse virado um filme onde o mocinho não aceitava o fato de ter matado alguém. Mocinho! Há! Parecia até piada, se sentia muita coisa menos o mocinho naquela situação. Como seu pai reagiria? Como ele conseguiria viver com aquilo? Não parecia ver luz no fim do túnel, não havia luz, era isso que estava concluindo.

Repentinamente algo quebrou seu torpor. Um carro em alta velocidade passou pela rua à frente da loja, assustando-o. Olhou para a porta dupla de vidro da loja como se tentando localizar o rastro deixado pelo carro. Desta vez mais alerta, percebeu mais um ronco vindo ao longe, e quando este passou em frente à loja, Jhonny pôde perceber que o carro não estava apenas rápido, estava muito mais rápido do que jamais vira dentro de uma cidade.

Repentinamente um pensamento o atingiu. As portas de vidro deixavam exposto o interior da loja, inclusive o corpo estirado no chão. Levantou-se e estacou olhando para o corpo, como se esperando alguma reação, que não veio. Dirigiu-se para a frente da loja com os olhos fixos no corpo e ao chegar perto desta, sentiu uma inesperada vontade de sair correndo rua acima, deixando tudo aquilo para trás.Abriu as portas e deu um passo para fora respirando fundo, como se isso fosse limpar seus pulmões do infectado ar de dentro da loja.

Com a segurança de que não havia ninguém ali fora, encarou o corpo ali estendido e pensou em retirá-lo, porém raciocinando melhor tinha certeza que a polícia acharia suspeito caso ele fizesse isso. Ali fora ainda, sacou novamente o celular para conferir se Paulinho não havia ligado. Tentou novamente a polícia, porém ninguém atendia.

Ouviu novamente aquele barulho. Com o celular na orelha ainda, olhou rua acima e viu um carro ao longe descendo em uma velocidade absurda a rua. Temendo o pior, Jhonny reentrou a loja, mas algo o surpreendeu antes das portas se fecharem por completo. Um barulho alto, agudo, de pneu derrapando e logo após, o clássico barulho da batida.

Agora mais calmo sua cabeça começava a funcionar melhor. Não sabia como, mas talvez quando os policiais vissem que ele ajudou as pessoas do acidente, eles o tratariam melhor quando analisassem o seu caso. É! ERA ISSO! Isso ia funcionar, não tinha como não funcionar.

Em um momento de alegria repentina e desesperada, Jhonny abriu as portas da loja e olhou rua acima. Não foi difícil achar o acidente, um carro estava com a lateral enfiada em um poste de esquina, fazendo quase um grande e metálico “V”.

Correu rua acima com lágrimas de esperança escorrendo, ele teria salvação! Ele faria de tudo para que aquilo fosse sua salvação. Chegou ao carro e olhou para os lados, vendo que algumas pessoas vinham de uma rua perpendicular à da loja para o local do acidente. Com um sorriso egoísta no rosto,olhou o banco do motorista.

Seu sorriso desapareceu instantaneamente. Seu joelho se dobrou e a mão foi à boca, o vômito quase havia conseguido sair. Sentia o gosto ácido em sua garganta e babava com medo de engolir a saliva. Nunca havia sentido nojo ou nada de sangue, mas aquilo era diferente, completamente diferente. Ossos, sangue, MUITO sangue e até pedaços rosados que sabia o que era mais não queria pensar sobre o que era. Tentou se erguer e dando um passo para trás conseguiu ficar de pé. Àquela distância, não via tanta atrocidade quanto tinha visto, o que não causou-lhe tanta náusea e o permitiu perceber um movimento no banco do passageiro. Dando a volta por trás do carro (notando que não haviam pessoas nos bancos traseiros), chegou ao outro lado.

A porta do passageiro estava quase intacta e, apesar do carro ter dobrado violentamente, apenas o vidro havia estourado. Aproximou-se e agradeceu a Deus pelo passageiro estar debruçado em cima do que sobrou do motorista, bloqueando a imagem atroz do nauseado salvador. Tentou abrir a porta e surpreendeu-se quando esta abriu sem dificuldade. O passageiro debruçado estava se mexendo e emitindo grunhidos, o que Jhonny achou que era normal de uma vítima ferida de acidente. O homem ainda estava preso pelo o cinto de segurança.

“Espere um pouco que vô te ajudar”

Passou a mão pela cintura do homem tentando achar o botão para soltar o cinto, a náusea deu mais uma guinada ao sentir o botão de soltura melado com o que tinha certeza ser sangue. Depois de seu dedo escorregar duas vezes, conseguiu soltar o cinto, mas não conseguiu tirá-lo do homem que se recusava a mover-se para facilitar o trabalho.

“Pera... cara, encosta no banco, rapidão...” – Jhonny segurou o ombro do homem e tentou recostá-lo gentilmente, porém não funcionou. Mesmo com medo de machucar ainda mais o acidentado, imprimiu mais força à ação e obteve uma reação não muito esperada, o que o fez estacar.

Não sabia se havia delirado... não, não havia. Havia ouvido mesmo uma espécie de rosnar. “Que porra foi essa?” pensou. “Ele deve estar machucado e não consegue falar, só pode ser isso”.

“Já tiro você daí, pera, pode doer um pouco”

Forçou um pouco mais...

... vomitou.

O passageiro foi manchado com vômito mas não se importou, voltou à posição original e a fazer aquilo que Jhonny não acreditava que tinha visto ele fazer. Caiu sentado no chão e sua visão apagou, porém recobrou o sentido quando sua cabeça bateu contra o chão. Sentindo um pouco de suas forças, mesmo deitado de costas, foi empurrando o chão ralando seu cotovelo até estar a uma distância que o deixasse menos desesperado.

Não queria acreditar no que viu, aliás, ele deveria estar ficando louco, aquilo não acontecia. A imagem veio novamente em sua mente e desta vez vomitou em si mesmo. Não era possível, simplesmente não era... desmaiou.



Acordou assustado com o celular vibrando e tocando, olhou em volta com os olhos arregalados e vacilante retirou o celular do bolso.

“A-alô?”

“JHONNY, TRANCA A PORTA DA LOJA, EU ENTRO PELOS FUNDOS, DAQUI A POUCO JÁ CHEGO AÍ!”

A ligação caiu. Demorou um pouco, mas entendeu que era Paulinho, e toda a história, como um turbilhão, o atingiu. Olhou apressadamente para o carro a quase meio quarteirão de onde estava. Alguns homens se debruçavam tentando entrar no carro. Havia desmaiado, era isso que tinha acontecido. Olhou o celular, não havia se passado quase nenhum tempo desmaiado segundo seus cálculos mentais.

Levantou-se com dificuldade e lembrou-se do que Paulinho falara, tinha que ir para a loja. Com receio recomeçou a descer a rua. Sentia a parte de trás de sua cabeça latejando e passando a mão descobriu sangue, mas nem se importou. Chegando perto do carro, seus olhos se arregalaram e recomeçou a suar, comprimindo-se contra o enorme muro da construção atrás de si. As pessoas praticamente lutavam para entrar no carro, cada uma mais manchada de sangue que a outra, algumas terrivelmente feridas. Uma senhora debruçava-se contra a janela do motorista e com um puxão para fora fez sangue e carne voarem, pintando-lhe o rosto. Se os olhos de Jhonny pudessem pular de suas órbitas de tão arregalados, eles o teriam feito naquele momento, pois a velha que mastigava parou e começou a olhar fixamente para o assustado transeunte.

Não pensou duas vezes, em uma corrida alucinada com direito a tropeções de quase cair no chão, Jhonny alcançou rapidamente a loja e se colocou a procurar desesperadamente as chaves das portas. Achou-as e tremendo tentou trancar a loja, o que depois de cinco tentativas conseguiu realizar. Deu dois passos para trás e tropeçou no cadáver, indo ao chão.

Não conseguiu saber quanto tempo ficou ali no chão com as pernas por cima do morto, que agora nem era mais um problema, mas este tempo de torpor terminou quando a ensanguentada senhora apareceu atrás das portas de vidro e lá se recostou. Um após o outro, os personagens do macabro episódio do carro apareceram em frente à loja e se escoraram ao vidro... BAM! Jhonny deu um pulo sentado, uma das pessoas havia batido contra o vidro. BAM! Jhonny começou a chorar desesperadamente. BAM! BAM!

Sabia que estava perdido.